Cartas Fluminenses

 


 

 

Texto-fonte:

 Obra Completa de Machado de Assis, Edições W.M. Jackson, 1937.

 

Publicado originalmente em Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1867.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I

À OPINIÃO PÚBLICA

5 DE MARÇO DE 1867.

 

Dizem alguns que V. Excia. não existe; outros afirmam o contrário. Mas estes são em maior número, e a força do número, que é a suprema razão moderna, resolve as dúvidas que eu porventura possa ter. Creio que V. Excia. existe, em que pese aos mofinos caluniadores de V. Excia. Se não existisse, como se falaria tanto em seu nome, na tri­buna, na imprensa, nos meetings, na praça do comércio, na rua do Ouvidor? Das criações fabulosas não se fala com tanta insistência e generalidade, salvo se houvesse uma conspi­ração para asseverar aquilo que não é, e isto repugna-me acreditar.

 

Também por muito tempo se duvidou da existência de Mr. Hume, aquele célebre mágico que transformava os ovos em carvão, mas, se bem me lembro, apareceu um dia o dito mágico, e daí em diante ninguém mais duvidou dele. O mesmo há de acontecer com o judeu errante, de quem falam todos, e que eu creio que existe, sem ser a cholera-morbos, e que há de aparecer mais dia menos dia, tenho essa esperança.

 

É a maioria da gente que tem razão, e quando falo em maioria suponho ter pro­duzido um desses argumentos invulneráveis, até mesmo no calcanhar, apesar de quanto possa ter dito o visconde de Albuquerque.

 

Assentado isto, receba V. Excia. esta carta que é a primeira da série com que eu preten­do estrear na imprensa.

 

É costume entre a gente trocar os bi­lhetes de visita a primeira vez que se encon­tra. Na Europa, ao menos, é tão necessário trazer um maço de bilhetes, como trazer um lenço. V. Excia. terá desejo de saber quem sou. Di-lo-ei em poucas palavras.

 

Se a velhice quer dizer cabelos brancos, se a mocidade quer dizer ilusões fracas, não sou moço nem velho. Realizo literalmente a expressão francesa: Un homme entre deux âges. Estou tão longe da infância como da decrepitude; não anseio pelo futuro, mas também não choro pelo passado. Nisto sou exceção dos outros homens que, de ordiná­rio, diz um romancista, passam a primeira metade da vida a desejar a segunda, e a se­gunda a ter saudades da primeira.

 

Não sou alto nem baixo; estou entre Thiers e Dumas, entre o finado marquês de Abrantes e o visconde de Camaragibe. Cito os dois para dar cor local à compa­ração, e ficar logo às boas com a crítica literária. Além disso, há um ponto de contato entre o orador francês e o orador brasileiro; ambos obtiveram um apelido quase idênti­co pela semelhança da eloqüência parlamen­tar. Onde não há nenhum ponto de contato é entre os outros dois: nem o Sr. Camaragibe faz romances, nem Alexandre Dumas faz política, e creio que ambos se dão bem com esta abstenção.

 

Não sou votante nem eleitor, o que me priva da visita de algumas pessoas de consideração em certos dias, gozando, aliás, da es­tima deles no resto do ano, o que me é so­bremaneira agradável. Ao mesmo tempo poupo-me às lutas da igreja e às corrupções da sacristia.

 

Não privo com as musas, mas gosto delas. Leio por instruir-me; às vezes por consolar-me. Creio nos livros e adoro-os. Ao domingo leio as Santas Escrituras; os outros dias são divididos por meia dúzia de poe­tas e prosadores da minha predileção; con­sagro a sexta-feira à Constituição do Brasil e o sábado aos manuscritos que me dão para ler. Quer tudo isto dizer que à sexta-feira admiro os nossos maiores, e ao sábado durmo a sono solto. No tempo das câmaras leio com freqüência o padre Vieira e o padre Bernardes, dois grandes mestres.

 

Quanto às minhas opiniões públicas, te­nho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a republica de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobre­tudo como brasileiro que me agrada esta úl­tima opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocra­cia que o sol jamais iluminou..

 

Não freqüento o paço, mas gosto do im­perador. Tem as duas qualidades essenciais ao chefe de uma nação: é esclarecido e ho­nesto. Ama o seu país e acha que ele me­rece todos os sacrifícios.

 

Aqui estão os principais traços da minha pessoa. Não direi a V. Excia. se tomo sorvetes nem se fumo charutos de Havana; são ridiculezas que não devem entrar no espírito da opinião pública.

 

Agora que me conhece, perguntará V. Excia. por que motivo esta primeira carta é dirigida à sua pessoa, e que lhe quero dizer com esta dedicatória. Nada mais simples. Entrando numa sala, cumprimenta-se logo a dona de casa; entrando na imprensa, dirijo-me a V. Excia. que é a dona dela, segundo dizem as gazetas, e eu creio no que as gazetas dizem.

 

Consinta V. Excia. que eu não lhe faça cor­te. De todas as pessoas deste mundo é V. Excia. a mais cortejada desde que um italiano escreveu estas celebres palavras: — de l'opi­nione, regina del mondo, talvez para contra­balançar o título que as ladainhas da Igreja dão à Virgem Maria, regina angelorum. Não será V. Excia. igual à Virgem Maria, mas creio poder compará-la a Santa Bárbara, e real­mente é uma Santa Bárbara, que a maior parte da gente invoca na hora do temporal e esquece na hora da bonança. Eu serei o mesmo em todas as fases do tempo, e se vier a cortejá-la algum dia, será em silêncio, silentium loquens, como dizia S. Jerônimo, outro advogado contra as borrascas.

 

Terá V. Excia. a indiscrição de pedir-me um programa? Acho que este uso parla­mentar não pode ter aceitação nos domínios da musa epistolar, que é toda incerta, capri­chosa, fugitiva. Demais, sei eu acaso o que há de acontecer amanhã? Posso criar uma norma aos acontecimentos? Deixe que os dias passem, e o sucessor com ele, os sucessos imprevistos, as coisas inesperadas, e a respeito de todos direi francamente a minha opinião.

 

Ou, se quiser absolutamente um programa, dir-lhe-ei que prometo escrever com pena e tinta todas as minhas cartas, imitando deste modo o programa daquele ministério que consistia em executar as leis e economizar os dinheiros públicos. Profun­da política que toda a gente compreendeu de um lance. Perdoe-me V. Excia., creio que V. Excia. apoiou esse ministério; ao menos assim dizem os amigos dele; e creio que também lhe fez oposição; ao menos, diziam-no os parlamentares oposicionistas. Coisas de V. Excia.

 

É nisto que ninguém pode vencê-la. O dom de ubiqüidade é V. Excia. quem o tem de uma maneira prodigiosa. Agora, por exem­plo, não anda V. Excia. de um lado trajando se­das e agitando guizos, alegre e descuidada, pulando uma valsa de Strauss, dando a mão à tísica dos pulmões e à tísica das algibeiras, e de outro lado envergando uma casaca pre­ta, e distribuindo pelos candidatos políticos a palma eleitoral? Ajuizada e louca, grave e risonha, entre uma urna e um cálice de cham­panhe, na esquerda o tirso da bacante, na direita o estilo do escritor, olhar de Cícero, calva de Anacreonte, eis aí V. Excia., a quem todos adoram, os velhos e os mancebos, os boêmios e os candidatos.

 

A verdade é que V. Excia. tem às vezes caprichos singulares; gosta da cor vermelha, e a pretexto de eleição, inspira não sei que maus ímpetos ao leão popular, que a tudo investe e tudo desfaz. Nessas ocasiões V. Excia. não tem cetro, como rainha que é, tem um cacete, que é um teorema infalível. Mas nem assim perde o caráter de opinião: é esse o parecer dos seus escolhidos.

 

Enfim, são ímpetos. O pior é quando, em vez de ímpetos, apenas se emprega o meio da corrupção das urnas, da sedução do vo­tante, da intervenção do fósforo, — pasmo­so invento que eu coloco entre a obra de Fulton e a obra de Gusmão, vulgo Montgolfier. Isso é que é pior. Francamente, eu creio que V. Excia. desconhece todos esses meios, e os condena, e se acaso os sofre é por honra da firma. Em todo caso, por que não protesta V. Excia.? É deste silêncio que algumas pessoas tiram a conclusão de que V. Excia. não existe.

 

É amanhã que V. Excia. tem de escolher definitivamente os deputados; começam duas quaresmas, uma religiosa, outra política. Ama­nhã os católicos e os candidatos vão receber a cinza, e todos recebem a cinza, — ainda os que não forem eleitos, — uns na testa, outros nos olhos. Alegrias e decepções, dores e flores, todas as exaltações, todos os abatimentos, todos os contrastes. Eu creio que há em todo o império uma soma de políticos capaz de formar cinco ou seis câmaras. É que não há outra classe mais numerosa no Brasil. Di­vide-se essa classe em diversas secções: políticos por vocação, políticos por interesse, políticos por desfastio, políticos por não terem nada que fazer. Imagino daqui o imenso trabalho que há de ter V. Excia. em escolher os bons e úteis dentre tantos. E esse é o meu desejo, essa é a necessidade do país. Mande-nos V. Excia. uma câmara inteligente, generosa, honesta, sinceramente dedicada aos interesses públicos, uma câmara que ponha de parte as subtilezas e os sofismas, e entre de fren­te nas magnas questões do dia, que são as grandes necessidades do futuro, de que de­pende a grandeza, ia quase dizer a existência do corpo social.

 

Mas eu que falo assim obscuro e rude, quem sou eu para dar conselhos à opinião, regina del mondo? Perdoe-me V. Excia. É natural nos homens, e eu sou homem, homo sum. Ao menos veja nisto a minha boa von­tade e o grande amor que lhe tenho.

 

Creio que esta carta vai longa; tenho-lhe roubado demasiado tempo. Vou pôr aqui o ponto final, e recolher-me ao silêncio, a fim de pensar nos diversos assuntos com que me hei de ocupar, se Deus me der vida e saúde.

 

Devia ir vê-la hoje divertindo-se e pu­lando, mas não posso. Consagro o dia de hoje a S. Francisco de Salles, apropriado à estação de penitência que começa amanhã. Preparo assim o meu espírito à meditação. Além de que, o bom do Santo é um dos me­lhores amigos que a gente pode ter: não fala mal nem dá conselhos inúteis. Se V. Excia. cuida que é um homem de carne e osso, en­gana-se; é um maço de folhas de papel metidos numa capa de couro; mas dentro do couro e do papel fulge e palpita uma bela alma.

 

 

JOB

 

 

 

II

À HETAIRA 

12 DE MARÇO DE 1867.

 

Se a opinião domina os costumes políti­cos, a senhora domina os costumes sociais. É rainha por graça do diabo e unânime aclamação da vaidade humana. Governa sem oposição nem contraste; manda o que quer, como quer, quando quer. Tem cavalos para pisar o filósofo pedestre; tem sedas para afrontar a honestidade desvalida. O número dos seus ministros é infinito; a dedicação deles não tem rival nem nos cortesãos da for­tuna. Quando a senhora os quer aumentar conquista-os aos milhares sem a lança de Alexandre nem a espada de Frederico Magno; conquista-os com o olhar, com o pé, com uma palavra alegre, e às vezes menos que tudo isso, com a simples presença da sua pessoa e dos seus arrebiques. A Vênus de Homero denunciava-se apenas pelo andar; a senhora tem a mesma qualidade divina: basta aparecer para revelar-se quem é. E reconheço que não é por falta de esforços seus, por quanto a comparar somente o vestuário, é difícil dis­tinguir hoje uma mulher pública de uma mu­lher honesta. Parece que a senhora tem por timbre imitar a virtude, ao menos por esse lado, e sacrificar à moda as suas pretensões exclusivistas. O que a distingue, porém, é um certoquid”, um ar especial, um tom indígena, que só possui quem foi criada nas terras de Vênus impudica. Nisso é impossível imitá-la.

 

De ordinário, a senhora tem dois nomes, um recebido na pia, outro que lhe dá o pú­blico: batiza-se por Luíza, Maria ou Mar­garida, e toma o pseudônimo de Nicota, Olhos Verdes, Flor da Noite, e outros menos poéticos. Nasce em qualquer bairro da cidade; cresce, aformoseia-se, abre as suas graças, corrige-as, desenvolve-as, até abrir ten­da bem provida e adornada, aonde convida os passantes para a mercancia do amor.

 

É provável que a senhora desconheça a designação que lhe dei no cabeçalho desta carta. Hetaira é uma palavra grega que desi­gna as mulheres da sua profissão. A senhora não tem obrigação de saber grego, nem la­tim; ninguém lhe pede mesmo que saiba a sua língua, que nada vale ao pé de uma das línguas universais, como o dinheiro, que a senhora conhece profundamente, como a mú­sica, de que às vezes conhece apenas a gramática, e já é demais. Mas não se iluda com a naturalização helênica, se acaso acre­dita em mim. As hetairas de Atenas eram coisa diversa das de hoje. Primeiramente, a índole do amor pagão, se não estava ainda reabilitada pelo espírito cristão, não havia também assumido o caráter puramente mer­cantil deste tempo. Era uma espécie de vo­luptuosidade misturada ao amor da plástica e à adoração da forma. Os gregos não esque­ciam nunca que a sua Vênus nascera das es­pumas da água marinha para ir direitinho ao Olimpo dos outros deuses. Demais, como a senhora vai saber, algumas das suas colegas da antiguidade recebiam em sua casa, em palestra animada, os primeiros homens da república, os chefes políticos, os generais, os filosóficos. O sábio Sócrates, que a senhora mandaria hoje expelir por dois lacaios, não se pejava de penetrar nesses santuários de Vênus, e conversar com a sacerdotisa, aconse­lhá-la mesmo; e de uma delas, não se envergonha de confessá-lo, aprendeu ele tudo que sabia acerca do amor. Avalie a diferença enorme que vai de um tempo a outro. Da antiga cortesã a senhora apenas herdou a fome de ouro, aura fames, porque ela também amava o precioso metal; mas o resto desvaneceu-se ao sopro dos tempos.

 

Alegará a senhora que também imita as damas de Atenas em franquear as suas portas aos generais e aos políticos, e não sei se aos filósofos também. Acredito que sim, mas franqueia-as aos outros políticos e generais que eles trazem nas algibeiras, aos bilhetes do tesouro, às libras esterlinas, aos soberanos, aos thalers, aos contos de réis que a senhora prefere aos contos de Perrault ou aos da carochinha. Na velha Atenas as hetairas formavam, por assim dizer, a socie­dade; eram um centro natural, onde se tra­tava de tudo; da última comédia de Aristófanes, da recente resolução de Cleon, de uma vitória na Ásia, de um cometa, de uma novidade filosófica, tudo isso de envolta com as coisas do amor.

 

Poupo-lhe uma investigação através dos tempos, e dispense-me de escrever-lhe a ge­nealogia. Importa-nos pouco saber que transformação sofreu o tipo que a senhora re­presenta. Resta-nos aceitá-la como hoje é, definir a sua incontestável realeza no domínio dos costumes. Para contentar a sua vai­dade e a dos seus numerosos vassalos, não pre­cisa mais.

 

Mas a singularidade da sua realeza está em que todos, mesmo aqueles que nunca foram seus vassalos confessados, os mais se­veros, os mais Catões, não deixam de tribu­tar-lhe embora indiretamente uma homena­gem desonrosa. Olhe o que acaba de acon­tecer na capital da França, donde imitamos tudo. Ali estreou a senhora, no mês passa­do, num teatro de Bufos, com o nome de Cora Pearl, nome célebre nos anais de Pa­fos. Cora Pearl é uma Vênus eqüestre que, segundo dizem os que de lá vêm, reina sem contraste no bosque de Bolonha, onde não passam melhores cavalos nem rodam mais elegantes faetons que os dela. É uma ver­dadeira rainha das Amazonas, com um seio de mais e a consciência de menos. Os jornais chamam-lhe centaureza.

 

Pois estreou a senhora debaixo daquele nome: lembrou-se de ter talento para a ce­na. Para ir admirar os alexandrinos de Corneille ou a prosa lírica de V. Hugo, na boca dos consumados atores da Comédia Francesa, paga-se o preço comum; para ouvi-la a coisa foi diversa: os camarotes orçaram por cem mil réis, as cadeiras por cinqüenta. E que auditório! Os príncipes, os marqueses, os embaixadores, um filho de Murat, um descendente de Turenne, um primo de Bona­parte, um paxá, todas as religiões, todas as famílias.

 

Se amanhã, a senhora, cansada mas não saciada de trunfos, se lembrar de ter um aqui no nosso Rio de Janeiro, nesta capital que é sua pelo dom de ubiqüidade que a se­nhora partilha com a opinião publica, há de tê-lo, se não tão luzido como lá, onde há mais gente, ao menos quanto basta para provar que a realeza do mundo atual lhe pertence e que a espada dos generais e o gabinete dos estadistas valem menos que o seu braço tor­neado e a sua perfumada alcova.

 

Se valem! A senhora tem. a seu favor uma arma poderosa, entre outras, que é o luxo; a senhora vingou-se; teve o seu 89, o seu 22, e, mais feliz que  Tiradentes, não morreu no cadafalso, subiu ao Capitólio, on­de é coroada de brilhantes e pérolas, e até pelas musas que lhe fazem versos e comédias. Os dominadores é que passaram a ser trastes de luxo, e a senhora domina-os, move-os, eleva-os, abate-os, como se foram uns títeres, ao simples capricho da sua vontade. O luxo firma o seu trono; essa peste, que veio da Ásia para acabar com os restos da severida­de romana, é a condição essencial do ponti­ficado que a senhora exerce na igreja do dia­bo, que Santo Agostinho diz imitar a igreja de Deus — e eu peço licença para desmentir o padre ao menos neste assunto.

 

Quando a senhora passa pelas ruas, de carro ou a pé; quando vai aos teatros, on­de aparece sempre às nove horas, como um entreato inesperado, todos os olhos, todas as atenções, os velhos, os moços, as damas, vol­ta-se tudo para a senhora, quer se chame Fúlvia, Metela ou Otávia. Não é um triunfo isto? Mas ao lado desse, há outro triunfo tão grande e tão singular: é o triunfo pecuniário do autor de tantas obras. Triunfo pede triunfo. Nasce a emulação. A senhora é bela; mas as suas jóias são ricas; possuí-la quer dizer enriquecê-la mais. Es­tabelece-se uma almoeda entre duas consciências — perdão — entre duas algibeiras. Duas? três, quatro, seis. Dentro de um quarto de hora conta a senhora meia dúzia de rivais, boas mães de família, que a essa hora se ocupam talvez em pôr o seio túrgido e casto en­tre os lábios de uma criança, fruto de esque­cidos amores. Que quer? Há em todos os homens um pouco de Narciso; a senhora que é um espelho, está destinada a refletir-lhes o orgulho de possuir. A esposa é apenas uma casaca, traje comum; a hetaira é uma far­da agaloada de ouro.

 

Agora, as conseqüências. Com esta rea­leza, que ninguém contesta, raros criticam e a maioria aplaude, que é reconhecida e man­tida em todas as latitudes e em todas as línguas, faz a senhora duas funestas destrui­ções: abate a velhice e corrompe a mocida­de; faz da mocidade uma velhice sem vene­ração; faz da velhice uma mocidade sem no­breza. Os arrojos da juventude, as ilusões, os cantos e os sorrisos próprios da alvorada da vida, acaso os tem a falange de velhos prematuros, que contam vinte anos pelo calendário e cinqüenta pela fadiga? E a co­roa da velhice, que é uma coisa augusta, as santas cãs, que a aproximação do túmulo vai transformando em monumento, acaso as encontramos nos anciãos refeitos que enco­brem os setenta anos do calendário com uma primavera artificial e ruidosa? Pois tudo isto é obra da hetaira moderna, e como conseqüência disso, o desprendimento dos laços da família, o abatimento dos costumes, a trans­formação das sociedades despojadas do ideal, que é o farol do futuro, e da tradição que é o do passado.

 

A senhora há de dizer consigo que eu, valendo menos que Sócrates, sou mais desa­piedado que ele, pois o filósofo não es­crevia destas coisas às suas elegantes contemporâneas. É verdade. Mas todos os ho­mens têm um defeito ao menos; a indulgência de Sócrates e a minha austeridade são o nosso calcanhar de Aquiles. Não me suponha um profeta carrancudo derramando lá­grimas inúteis pelas desgraças de Sião. É certo que já pendurei nos ramos dos salguei­ros a harpa das minhas mais caras ilusões, mas ainda me resta um pouco de fé, assaz robusta, para levantar-me a cabeça e os olhos para Deus. E por falar em Deus, faço-lhe um pedido: é que não procure o caminho da igreja senão quando tiver esquecido o cami­nho do erro. Nesta época de penitência tenho-a visto, desde que me entendo (há vinte anos) trajar de preto e ir ouvir na casa de Deus a palavra do sacerdote. É bom, é necessário, quando se rompe com o passado. Mas transformar a nave sagrada em campo de Fársalia para os incautos Pompeus que lá vão, perdoe-me a senhora, é escrever a ulti­ma palavra do catecismo do mal. Para en­trar na casa de Deus não basta um vestido preto; é preciso uma alma nova, isto é, uma intenção pura. Dirá a senhora que a regra vale para outros pecadores igualmente reincidentes. Tem razão; mais razão terá se disser que esta sociedade não tem o espírito, mas o hábito religioso; — tem as obras, e não tem a fé, que está acima das obras. Mas falar disto agora não seria escrever uma ter­ceira carta?

 

Deixe-me concluir aqui, e perdoe-me se lhe interrompi o opulento almoço; mas con­sole-se com a idéia de que eu vou tomar ape­nas um pouco de trigo amassado e uma infusão de folha chinesa, — admirável sobriedade que só pode mostrar um homem pobre, como eu.